Causos de importação: “Não é uma bíblia, é uma D.I e em canal vermelho.”​

Era início da segunda quinzena de dezembro do longínquo ano de 2009, as pessoas assistiam ao chatíssimo Avatar nos cinemas, se endividavam comprando o iPhone3G enquanto eu comprava jogos de Xbox 360 no eBay, pois o dólar custava por volta de 1,70 e 1,80.

– Essa Fatura comercial está gigante, acho que vai dar mais de 200 adições – Disse meu chefe enquanto preparava para registrar a Declaração de Importação (D.I).

– (Bufada profunda) vou adiantar forte meu trabalho hoje então… – Respondi melancolicamente similar às bandas emos que ainda faziam sucesso.

– Por quê?

– Porque vai dar canal vermelho e é a minha vez de ir no porto realizar a vistoria física.

– Eita, Jonas! De novo com essa negatividade?

– Nem vem, a última vez que eu adivinhei que ia dar vermelho foi quando o exportador mandou aquele brinde surpresa e nos avisou somente depois do embarque.

– Tá bom! Deixa eu continuar a D.I, pois vai levar o dia todo para conseguir registra-la hoje.

Na manhã do dia seguinte

 Jonas, eu tenho boas e más notícias para você! A boa notícia é que a D.I de ontem deu 238 adições, a maior que já fizemos, e consegui registra-la ontem! Mas deu vermelho…

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– (Bufada pelo nariz, para disfarçar) Eu já vou imprimir essa D.I e solicitar desova do container ao porto.

– Ok, lembre-se que semana que vem o estaleiro entra em férias coletivas.

Ninguém esquece que as férias coletivas estão chegando, mas o tempo para desembaraçar essa importação estava curto, se não conseguisse em menos de 1 semana pagaríamos quase 30 dias de armazenagem em área alfandegada.

Por sorte (depois de tamanho azar), conseguimos a desova para a tarde no mesmo dia, portanto, depois do almoço pego meu ‘’kit vistoria física que vai dar um trabalho do cão’’:

  • D.I
  • Fatura comercial e Packing List
  • Canetão
  • Lápis, borracha, folhas A4 e prancheta
  • iPod e fones de ouvido (Não, não era iPhone)

E sigo ao porto para iniciar a

Identificação e separação dos produtos

O fiel depositário me acompanha dentro da área alfandegada até o armazém onde as caixas e pallets dessa gigante D.I me aguardam.

– Que papelada toda é essa? Imprimiu a bíblia para rezar por um desembaraço rápido? – Questionou-me o fiel fazendo graça.

– Isso aqui é a D.I – Respondi quase lacrimejando. Ele subitamente esconde o sorriso e pergunta:

– Tá brincando né?

– Não, e eu imprimi frente-verso…

– Quantas adições?

– 238 adições e sei lá quantos produtos isso totaliza… E tenho uma semana para desembaraçar e carregar para fora do porto antes de entrarmos em férias coletivas.

Minhas respostas sintonizaram o fiel no mesmo desânimo que o meu e piorou quando chegamos no armazém, nos indicaram aonde estavam meus volumes e ficamos impressionados com o quanto de mercadoria é capaz de caber num container 40’ DRY, ocupou facilmente um terço do espaço disponível.

Parecia uma importação de cacarecos chineses para serem vendidos em Lojas de 1,99, pois eram poucos itens de grande volume e muitas pequenas partes e acessórios para diversos equipamentos navais, predominando:

  • Tubulação: Flanges, cotovelos, mangas e válvulas;
  • Ar-Condicionado: Tubos de cobre, cilindros, dutos, serpentinas e isolantes térmico;
  • Elétrica: Cabos, conectores, lâmpadas e placas de comando; e
  • Montagem: Parafusos, porcas, arruelas, suportes.

Mas não havia tempo para procrastinar em frente a todas aquelas caixas e pallets.

Conforme a equipe do armazém me ajudava abrindo as caixas, eu analisava os produtos para identificar onde estavam na D.I, anotando o nº de sua adição na embalagem e também no mapa do armazém que desenhei na folha.

Essa separação e identificação é necessária quando há muitos produtos, pois sabíamos por experiência que, se durante a vistoria com a RFB, nós demorássemos para encontrar a alguma adição, o fiscal suspenderia a conferência e prorrogaria em 1 ou 2 dias.

Então era preciso fazer certo e de primeira.

No final do terceiro dia de separação de mercadoria, retorno ao estaleiro coberto de suor e empanado com poeira, lã de vidro e serragem, porém feliz, pois havíamos terminado separar todas as 238 adições. Era cedo para um tipinho pessimista como eu comemorar, mas após tanto trabalho, eu estava no modo ‘’Vamo nessa! Que venha logo…”

A vistoria física

Conseguimos agenda-la para o dia seguinte, perfeito! Calculei que se o fiscal quiser ver, no pior das hipóteses ¼ de tudo, deveríamos terminar em no máximo 2 horas e talvez fosse possível entregar no estaleiro dois dias depois, tendo um dia de sobra antes das férias.

O otimismo estava mesmo fora de controle.

O dia da vistoria chegou e aguardava a chegada do fiscal ao lado de minha mercadoria. Como era normal demorarem pelo menos 1 hora para chegar, improvisei uma poltrona com uma tampa de madeira e lã de rocha, enquanto ouvia (provavelmente) The Roots no meu iPod.

Chegando o excelentíssimo no armazém, nos cumprimentamos como de costume e iniciamos o trabalho sem delongas.

– Jonas, vamos começar com a adição 14.

Olho no meu mapa e vejo que se trata de uma Bomba para óleo combustível. Descrição, classificação fiscal e Nº de série oks. Vamos para a próxima!

– Agora a 35.

Encontro dentro da caixa de madeira um saquinho com 500 arruelas de aço, tudo certo, mas penso ‘’Por que perder tempo com produto baratinho?’’ Há outros produtos caros como a Bomba para dar uma multa gorda.

– A 40, por favor.

Um pallet com Válvulas tipo globo, também tudo certo com o declarado, penso eu “Vamo que vamo! Só deve faltar umas 50 para vermos!’’

– Ok Jonas.

– Beleza, qual a próxima?

– Não não, já encerramos.

– Por quê? Vamos continuar amanhã?

– Não, Jonas, estou satisfeito, devo desembaraçar hoje início da tarde.

– …………………….Sério mesmo?

– Sim, Jonas, até mais.

Depois de ouvir essa aguardada frase, disfarcei agindo no automático e o cumprimentei como se fosse mais um dia normal na importação, pois internamente eu estava sendo consumido por uma dualidade de sentimentos.

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Eu estava muito feliz de ter conseguido o desembaraço antes das férias e por ter economizado um belo dinheiro de armazenagem, mas um outro lado meu estava indignado e vociferando internamente:

‘’2 dias e meio separando mercadoria e você liberou depois de conferir 3 adições?! Não senhor! Vamos conferir pelo menos 50 e é bom achar algo errado por que EU achei!’’

***

Essa história é real, apenas alterei alguns detalhes por bom senso profissional, assim como o fiz no anterior abaixo.

Mas o nº de adições é bem verdadeiro, não esquecerei desse número por nada.

 

Quem é o Jonas?

É um cara que trabalha há mais de onze anos com comércio exterior, importação e continua apaixonado pela falta de rotina que essa vida tem! Aliando seu amor pela escrita, desenvolve de forma simples e bem-humorada, pois a leitura não precisa ser um fardo para ensinar.

E o que começou como hobby, rendeu a oportunidade de escrever e palestrar para empresas do ramo como Cheap2ship, Cronos, DC Logistics, Amtrans, Fazcomex, Logcomex, entre outras.

Quando não escreve, pratica artes marciais, enfrenta sua eterna sua pilha de livros, joga vídeo game desde o Atari e também curte ajudar os outros profissionalmente, seja trocando uma ideia ou com soluções para quem está em apuros.